O Passado da Maconha

O primeiro registro do contato entre o Homo sapiens e a Cannabis sativa é de 6 000 anos atrás. Trata-se da marca de uma corda de cânhamo impressa em cacos de barro, na China. O emprego da fibra, não só em cordas mas também em vários tecidos e, depois, na fabricação de papel, é um dos mais antigos usos da maconha. Graças a ele, a planta, original da região ao norte do Afeganistão, nos pés do Himalaia, tornou-se a primeira cultivada pelo homem com usos não alimentícios e espalhou-se por toda a Ásia e depois pela Europa e África.

 Mas há um uso da maconha que pode ser tão antigo quanto o da fibra do cânhamo: o medicinal. Os chineses conhecem há pelo menos 2 000 anos o poder curativo da droga, como prova o Pen-Ts'ao Ching, considerado a primeira farmacopéia conhecida do mundo (farmacopéia é um livro que reúne fórmulas e receitas de medicamentos). O livro recomenda o uso da maconha contra prisão-de-ventre, malária, reumatismo e dores menstruais. Também na Índia, a erva já há milênios é parte integral da medicina ayurvédica, usada no tratamento de dezenas de doenças. Sem falar que ela ocupa um lugar de destaque na religião hindu. Pela mitologia, maconha era a comida favorita do deus Shiva, que, por isso, viveria o tempo todo "chapado". Tomar bhang seria uma forma de entrar em comunhão com Shiva.

O Hinduísmo não é a única religião a dar destaque para a cannabis. Para os budistas da tradição Mahayana, Buda passou seis anos comendo apenas uma semente de maconha por dia. Sua iluminação teria sido atingida após esse período de quase-jejum. Da Índia, a maconha migrou para a Mesopotâmia, ainda em tempos pré-cristãos, e de lá para o Oriente Médio. Portanto, ela já estava presente na região quando começou a expansão do Império Árabe. Com a proibição do álcool entre o povo de Maomé, iniciou-se uma acalorada discussão sobre se a maconha deveria ser banida também. Por séculos, consumiu-se cannabis abundantemente nas terras muçulmanas até que, na Idade Média, muitos islâmicos abandonaram o hábito. A exceção foram os sufi, membros de uma corrente considerada mais mística e esotérica do Islã, que, até bem recentemente, consideravam a cannabis fundamental em seus ritos.

Os gregos usaram velas e cordas de cânhamo nos seus navios, assim como, depois, os romanos. Sabe-se que o Império Romano tinha pelo menos conhecimento dos poderes psicoativos da maconha. O historiador latino Tácito, que viveu no século I d.C., relata que os citas, um povo da atual Turquia, tinham o costume de armar uma tenda, acender uma fogueira e queimar grande quantidade de maconha. Daí ficavam lá dentro, numa versão psicodélica do banho turco.

Graças ao contato com os árabes, grande parte da África conheceu a erva e incorporou-a aos seus ritos e à sua medicina – dos países muçulmanos acima do Saara até os zulus da África do Sul. A Europa toda também passou a plantar maconha e usava extensivamente a fibra do cânhamo, mas há raríssimos registros do seu uso como psicoativo naquele continente. Pode ser que isso se deva ao clima. O THC é uma resina produzida pela planta para proteger suas folhas e flores do sol forte. Na fria Europa, é possível que tenha se desenvolvido uma variação da Cannabis sativa com menos THC, já que não havia tanto sol para ameaçar o arbusto.

O fato é que, na Renascença, a maconha se transformou no principal produto agrícola da Europa. E sua importância não foi só econômica: a planta teve uma grande participação na mudança de mentalidade que ocorreu no século XV. Os primeiros livros depois da revolução de Gutemberg foram impressos em papel de cânhamo. As pinturas dos gênios da arte eram feitas em telas de cânhamo (canvas, a palavra usada em várias línguas para designar "tela", é uma corruptela holandesa do latim cannabis). E as grandes navegações foram impulsionadas por velas de cânhamo – segundo o autor americano Rowan Robinson, autor de O Grande Livro da Cannabis, havia 80 toneladas de cânhamo, contando o velame e as cordas, no barco comandado por Cristóvão Colombo em 1496. Ou seja, a América foi descoberta graças à maconha. Irônico.

Sobre as luzes da Renascença caíram as sombras da Inquisição – um período em que a Igreja ganhou muita força e passou a exercer o papel de polícia, julgando hereges em seu tribunal e condenando bruxas à fogueira. "As bruxas nada mais eram do que as curandeiras tradicionais, principalmente as de origem celta, que utilizavam plantas para tratar as pessoas, às vezes plantas com poderes psicoativos", diz o historiador Henrique Carneiro, especialista em drogas da Universidade Federal de Ouro Preto. Não há registros de que maconheiros tenham sido queimados no século XVI – inclusive porque o uso psicoativo da maconha era incomum na Europa – , mas é certo que cristalizou-se naquela época uma antipatia cristã por plantas que alteram o estado de consciência. "O Cristianismo afirmou seu caráter de religião imperial e, sob seus domínios, a única droga permitida é o álcool, associado com o sangue de Cristo", diz Henrique.

Em 1798, as tropas de Napoleão conquistaram o Egito. Até hoje não estão muito claras as razões pelas quais o imperador francês se aventurou no norte da África (vaidade, talvez). Mas pode ser que o principal motivo fosse a intenção de destruir as plantações de maconha, que abasteciam de cânhamo a poderosa Marinha da Inglaterra. O fato é que coube a Napoleão promulgar a primeira lei do mundo moderno proibindo a maconha. Os egípcios eram fumantes de haxixe, a resina extraída da folha e da flor da maconha constituída de THC concentrado. Mas a proibição saiu pela culatra. Os egípcios ignoraram a lei e continuaram fumando como sempre fizeram. Em compensação, os europeus ouviram falar da droga e ela rapidamente virou moda na Europa, principalmente entre os intelectuais. "O haxixe está substituindo o champagne", disse o escritor Théophile Gautier em 1845, depois da conquista da Argélia, que, na época, era outro grande consumidor de THC.

No Brasil, a planta chegou cedo, talvez ainda no século XVI, trazida pelos escravos (o nome "maconha" vem do idioma quimbundo, de Angola. Mas, até o século XIX, era mais usual chamar a erva de fumo-de-angola ou de diamba, nome também quimbundo). Por séculos, a droga foi tolerada no país, provavelmente fumada em rituais de candomblé (teria sido o presidente Getúlio Vargas que negociou a retirada da maconha dos terreiros, em troca da legalização da religião). Em 1830, o Brasil fez sua primeira lei restringindo a planta. A Câmara Municipal do Rio de Janeiro tornou ilegal a venda e o uso da droga na cidade e determinou que "os contraventores serão multados, a saber: o vendedor em 20 000 réis, e os escravos e demais pessoas, que dele usarem, em três dias de cadeia." Note que, naquela primeira lei proibicionista, a pena para o uso era mais rigorosa que a do traficante. Há uma razão para isso. Ao contrário do que acontece hoje, o vendedor vinha da classe média branca e o usuário era quase sempre negro e escravo.

- Fonte: http://tinyurl.com/brxsdhf
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